domingo, 25 de novembro de 2012

O Evangelho de Saramago - José, um judeu na Palestina ocupada



Aviso – A razão de ser da crítica é dialogar com a obra, lhe dotar sensações e sentidos percebidos por quem critica e transmiti-los. Colocando a obra em contato com a realidade que presencia, é atribuído o caráter de trabalho mútuo em progresso. Rejuvenesce o feito do artista. A arte concede brilho e dinamismo ao conhecimento, por isso, também, é tão perigosa. Esse esboço de uma análise da grande obra de Saramago pode “estragar a surpresa” da obra, revelando detalhes e finais, o que pode decepcionar quem pense que a arte se trate apenas de detalhes e finais. Esse pensamento é o mesmo que considerar observar um mapa substitui a viagem ou o resultado de uma partida de futebol vale pelo jogo. Então, como disse Maquiavel, “se é para fazer o mal, faça-o de uma vez”, deste já o final é antecipado: o herói morre na cruz.

O Evangelho de Saramago

Já sabemos, que em Saramago, vírgula é vírgula, está presente a todo instante, dando a escrita uma oralidade original, fluída e, assim mesmo, extremamente pessoal, pois, o peso de cada vírgula é definido pela respiração do leitor, o ponto, por sua vez, não é somente um ponto final, mas tem força e moral de uma exclamação, dada a raridade deste no texto. Também é peculiar a Saramago a relação estabelecida com o leitor, não um Eu-Tu, “Eu falo, tu escutas”, não, José faz acordo e conclusões com o leitor sem buscar máscaras ou refúgios, ele não conta uma história, mas conversamos sobre vidas vividas, o que abre brecha para ficarmos a vontade nos devaneios, sem incomodarmos com passado ou futuro, fatalidade ou pessoalidade.
A combinação destes elementos, pontuação única e pessoalidade acordada, conferem a prosa saramaguiana uma poderosa contundência poética, difícil não ser capturado e envolvido pelas longas frases curtas, como em um rio, no qual mergulha-se sem se imaginar a força da correnteza que arrasta para um mar infinito, não nos enganemos com essa metáfora, a beleza não é destino, é caminho.   
“Evangelho” significa “A Boa Nova”, são quatro os santos que o narram na Bíblia, são Mateus, são Marcos, são Lucas e são João. Destacam-se pelo seu caráter retórico autoritário, de convencimento intimidador imposto pela divindade. Na versão de Saramago para “a maior história já contada” a preocupação não é divinizar o homem Jesus, mas aproximar a divindade do homem. Alguns críticos do Evangelho de Saramago definem essa opção como “irônica”, oras irônica é a bíblia que quer dos homens uma uniformidade que não corresponde à diversidade da raça humana. O Jesus de Saramago não é único, nem mesmo é três, é múltiplo, carrega vários universos. Como todos nós, aliás.
A pluralidade é alcançada através das várias facetas assumidas  pelo autor, de filósofo a psicólogo. Poderíamos até chamar o escritor, e o próprio Cristo, de “Legião”, uma vez que são tantos. O primeiro Saramago, no entanto, é um espectador de um quadro renascentista que retrata o momento da morte de Jesus na cruz e o choro das Marias. Jesus não é o único a morrer, ao lado dele morre dois Ladrões, um homem oferece água e vinagre aos três condenados “e não faz diferença entre Jesus e os Ladrões, pela simples razão de que tudo isto são coisas da terra, que vão ficar na terra, e delas se fez a única historia possível


    A história de José – Judeu na Palestina ocupada
            
             No quadro ressalta-se o sol que brilha na hora da morte, mas a vida de Jesus começa em uma noite, como a maioria de nós, afinal, em geral acredita-se que o melhor momento para a concepção é na escuridão da noite. As dicotomias vão além da luz do dia e do breu da noite, sendo fundamentais no texto: deus e homem, pai e filho, abandono e comunhão, e por fim, como não poderia deixar de ser, vida e morte. Estas, no entanto, não são estáticas tornando-se relações ambíguas. Para engravidar Maria, deus não utiliza grandes poderes divinos, mas uma necessidade humana: “...José, perplexo, olhou o vulto da mulher, estranhando-lhe o sono pesado, ela que o mais ligeiro ruído fazia despertar, como um pássaro. Era como se uma força exterior descendo ou pairando sobre Maria lhe comprisse o corpo com o solo ... Estará mal, pensou, mas eis que um sinal de urgência o distraiu da preocupação incipiente, uma instante necessidade de urinar, também ela muito fora do costume...”
                Na noite após o humanissímo xixi de José, o casal José e Maria – sempre ela depois dele, pois como lembra Saramago, “as mulheres são secundarias em tudo, basta lembrar uma vez mais, e não será a ultima, que Eva foi criada depois de Adão e de uma sua costela, quando será que aprenderemos que há certas coisas que só começamos a perceber quando nos dispusermos a remontar as fontes” – recebe a visita de um misterioso mendigo que pede comida. Maria sacia a fome da misteriosa figura, que surpreende Maria com o anormal anuncio da incomum gravidez. O mendigo coloca um bocado de terra na tigela em que come, para em seguida revelar a Maria o que esperas. Ainda naquela mesma noite Maria fica com a cabeça confusa diante de tantos fatos inusitados, pois “o pensamento, afinal de contas, já por outros, ou o mesmo, foi dito, é como um grosso novelo de fios enrolado sobre si mesmo, frouxo nuns pontos, noutros apertado até à sufocação e ao estrangulamento, está aqui, dentro da cabeça, mas é impossível conhecer-lhe toda a extensão, seria preciso, desenrola-lo, estende-lo, e finalmente, medi-lo, mas isto, por mais que se intente, ou finja intentar, parece que não o pode fazer o próprio sem ajudas, alguém tem de vir um dia dizer onde se deve cortar o cordão que liga o homem ao seu umbigo, atar o pensamento à sua causa.
                Corre o tempo na Galileia, "A barriga de Maria crescia sem pressa, tiveram de passar-se semanas e meses antes que se percebesse às claras o seu estado, e, não sendo ela de dar-se muito com as vizinhas, por tão modesta e discreta ser, a surpresa foi geral nas redondezas." Chega à notícia do recenseamento imposto pelo Império: todos os chefes de família deveriam voltar à terra de origem para terem suas informações coletadas pelos oficiais romanos. Assim, no final da gravidez de Maria, a família ainda par, teria que se deslocar da pequena Nazaré para a também diminuta Belém, aldeia próxima a Jerusalém. Na estrada, José se encontra com as angústias e temores da paternidade, e é com um rabino que se conforta e se defronta esses anseios: “Não falava do teu filho, falava das mulheres e de como geram os seres que somos, se não será por vontade delas, se é que o sabem, que cada um de nós é este pouca e este muito, esta bondade e esta maldade, esta paz e guerra, revolta e mansidão
Resistência hebraica a Roma
                Naturais dúvidas que acometam pais no pré-natal, que se dissolvem no primeiro choro da criança. O filho de José e Maria nasceu como todos os filhos dos homens, sujo do sangue de sua mãe, viscoso das suas mucosidades e sofrendo em silêncio. Chorou porque o fizeram chorar, e chorará por esse mesmo e único motivo.” Após o parto normal, Maria e seu rebento recebem a visita de três pastores. O primeiro traz leite, o segundo queijo. O terceiro, mais alto, entra e diz sem olhar para ninguém, que não Jesus:” Com estas minhas mãos amassei esse pão que te trago, com o fogo que só dentro da terra há o cozi. E Maria soube quem ele era.
                Enquanto celebrava-se o nascimento em uma gruta na Palestina, em outra parte da terra que futuramente seria santa, o Rei Herodes agonizava. Temendo pelo futuro do legado, Herodes manda matar todos os recém-nascidos da região. Dois soldados distraídos conversam resignadamente sobre a natureza cruel do pedido, José ouve o dialogo e corre apavorado para proteger da missão dada sua prole do cumprimento. Somente a sua. Somente Jesus. Começa a partir daí o sofrimento psicológico de José, fruto do seu egoísmo, mas também resultado de uma ocupação estrangeira em terras alheias.
                José não consegue mais dormir, quando são e salvos voltem para Nazaré, “o sono é seu inimigo de todas as noites”. A culpa atrapalha o sono, mas não as noites de José, de modo que os irmãos de Jesus vão se multiplicando. Uma vida normal na terra ocupada da Galiléia.
                Nesse meio-tempo, os metódicos romanos aperfeiçoam o recenseamento. Ao invés das famílias se deslocaram a áreas centrais, os oficiais do Império que partem por todos os cantos sob a égide romana. Tal evolução aumenta com efetividade o recolhimento dos tributos, na mesma proporção cresce a insatisfação do povo hebreu. A ocupação da Palestina por forças militares estrangeiras sufoca os anseios dos judeus.
Um paralelismo semântico brilhante. Saramago retoma a obscura história do patriarca da família de Jesus para simbolizar a atual história dos palestinos em Israel. Contando uma história olvidada, a vida de José pós-natal, Saramago narra todas as outras vidas esquecidas. Mostra como perdemos referências básicas: no berço do cristianismo, um dos pilares da civilização ocidental, as mesmas atrocidades e injustiças que afetaram Jesus e sua família ainda ocorrem com outros inocentes.
O múltiplo Saramago aborda a questão por diversos ângulos, colocando passado e presente, tão distantes em tempo, próximos em ações. Quando a família deixava Jerusalém “tão irradiante vai em sua felicidade que uns toscos e brutos mercenários gauleses, louros, de grandes bigodes pendentes, armas postos, mas afinal, supõe-se, de terno coração deste renovo do mundo que é uma jovem mãe com o seu primeiro filho, estes guerreiros endurecidos sorriam à passagem da família, com podres dentes sorriam, é certo, mas o que conta é a intenção.” A comparação alusiva com os franceses atuais é hilária, mas não cabe aqui. Em 49 antes da história desse evangelho, Julio Cesar conquista definitivamente a Gália, os gauleses passam a ser tributados do império. Roma “globalizava” o mundo em que mandava. A presença de outros povos, era a presença do domínio não importando quem estava antes na terra ou não. Ainda bem que esses gauleses eram sorridentes. Gauleses mercenários a serviço do império podem mandar na terra mais do que judeus há anos na terra, só pelo fato de estarem a serviço de Roma?
O tempo presente é usada de forma espetacular em outro período, que narra a saída da família de Jerusalém: “Ficariam, pois, dois ou três dias mais, fariam as suas despedidas em boa e devida forma, com tais e tantas que vênias que não ficariam duvidas nem dividas, e então, sim, poderiam partir, deixando nos habitantes de Belém a recordação feliz duma família de galileus piedosos, bem-educados e cumpridores do dever, execepção assinalável, se tivermos em conta a fraca opinião que os habitantes de Jerusalém e arredores, no geral, fazem da gente da Galileia”. O contraste entre os tempos dos verbos salta aos olhos, “fazem” é o contrário, é uma constante. A Galileia não fica nas Cisjordânia ou em Gaza, assim, não está nas terras que os palestinos revindicam, mas o texto de Saramago não se preocupa com pormenores geográficos. Ressalte-se a permanência do preconceito, algumas ideias ficaram no passado, mas o preconceito como arma de dominação continua atual e atuante.
 Havia os que não cediam, poucos, e por isso morriam, e outros que, tendo aprendido a melhor lição, de que, ocupante bom é, justamente, e também, ocupante morto, tomaram em armas e foram para as montanhas. Diz-se armas, e elas eram pedras, fundas, paus, cacetes e cachaporras, alguns arcos e flechas, apenas o suficiente para começar uma intifada, e, lá mais para a frente, umas tantas espadas e lanças apanhadas em rápidas escaramuças, mas que chegada a hora, de poucos lhes podiam servir, tão habitualmente andavam, desde David, à impedimenta rústica, de benévolos pastores e não de guerreiros convictos” Poucas expressões são tão eloquentes quanto “intifada”. O termo, do árabe, significa “revolta”, entretanto, “Intifada” já perdeu muito da sua definição genérica, sendo designada para nomear a defesa dos palestinos contra a violenta ocupação militar dos israelenses. A reação dos palestinos é aproximadamente dois mil anos mais nova do que a dos judeus da época de José, contudo a luta se dá basicamente da mesma forma: contra um exército opressor, muita vezes extremamente cruel, armam-se com pedras, fundas, paus. A palavra “Intifada” nesse trecho vai além de “resistência” ou “revolta”, os judeus que fundaram a intifada, legitimamente, contra os seus opressores romanos. Saramago faz da palavra que hoje separa os dois povos um denominador comum para ambos, ligando o passado ao futuro, sem, no entanto, se esquecer quem é o agressor e quem é o agredido, quem está com pedras, fundas, paus, e quem está com o exército imperial.
Desde que o mundo é mundo, pessoas buscam na guerra um refúgio para suas mazelas, querem a força que a vida os renega. Não é o caso de José, é o caso sim do seu vizinho Ananias, que impossibilitado de ter filhos, vê na intifada judaica um sentido para a existência, “Vou para guerra como se pensasse fazer um filho”. Ananias parte para seu pessoal inverno da cultura, em busca da sua paz parte para a guerra. Como manda o costume das comunidades simples, o próximo vela pela casa do seu vizinho. Não tarda, no entanto, para chegar a péssima nova: Ananias encontra-se ferido na cidade de Séforis, vizinha a Nazaré. José, agora não tem um vizinho para vigiar sua casa durante a jornada, mas com o peso do remorso da morte das crianças que o ataca todas as noites, se dirige ao resgate de Ananias.
                Em um armazém de Séforis, ferido a beira da morte, está Ananias. O resgate falha, as feridas vencem, Ananias morre, resta a José dar uma despedida digna. O que também não é possível, uma vez que o burro que o trouxe até é roubado. O desespero toma conta de José, sabia que chegara a hora da condenação definitiva. ”Deus não perdoa os pecados que manda cometer” Na procura infrutífera pelo animal, José é preso pelos romanos que após um breve interrogatório levaram-no para a praça da cidade junto com outros prisioneiros, “percebendo que os homens que ali estavam eram rebeldes, protestou, Sou carpinteiro e gente de paz, e um dos que estavam sentados disse, Não conhecemos este homem, mas o sargento que comandava a guarda dos prisioneiros não quis saber, com um empurrão fez cair José no meio dos outros, Daí só sais para morrer.
                O pai de Jesus vê os outros 39 prisioneiros serem crucificados racionalmente, com atenção a economia de materiais e esforços e visando a eficácia.  O último a ser crucificado vê o sofrimento de toda a gente com a cidade sem aniquilada pelo romanos, enquanto os crucificados iam morrendo um por um. “O carpinteiro, chamado José filho de Heli, era um homem novo, na flor da vida, fizera há pouco dias trinta e três.”
Sara para Sharon
                O brilhante Saramago dedica a primeira parte do Evangelho a renegada figura paterna de Jesus, fazendo da jornada esquecida uma parábola para o conflito que ainda alimenta a terra santa com sangue: os judeus foram reprimidos, humilhados e massacrados por tropas a serviço de um império, não por serem de outra etnia ou seguirem outro Deus, não. Os hebreus não aceitam serem submissos, serem negados do direito a autodeterminação, serem privados da liberdade completa. A revolta é filha da opressão.  
Saramago tem um domínio absurdo da língua lusa, fazendo não só do enredo propriamente a alegoria, mas cada elemento da linguagem, cada ponto de reflexão dos personagens serem permeados pela dominação romana. O sofrimento particular do indíviduo não é independente da política, mas está totalmente inserido no contexto. Cada vida humana é afetada pela opressão. A dominação prolongada marca de maneira indelével o espírito do individuo para atingir o povo por completo, negando o direito a própria existência como tal. A linguagem é um instrumento de afirmação ou de confrontamento do domínio. Se houvesse uma “Folha de Roma” ou um “Império Times” ou outro jornal que servisse como eco do império, sem dúvida teria a mesma preocupação com inocentes e culpados que o sargento romano, estampando nas manchetes “Terroristas condenados” ou “Rebelião controlada”. Vale lembrar que “O Evangelho de Saramago” foi o último livro a entrar no Index, a lista de livros banidos pela Igreja de Roma. Com a linguagem da rebeldia, Saramago lembra que a Palestina não é só a Judéia, e que Israel não é um lugar, muito menos um Estado, mas uma percepção religiosa.
A sociedade ocidental se baseia nos mitos que esquece, Jesus também morrerá como um terrorista, só que ao contrário do José, não como mais um, mas como o principal agitador.   
O destino de José, depois de Cristo, não está especificado na Bíblia. Seu papel foi restrito a coadjuvante dos acontecimentos entre o Espírito Santo e Maria. O apócrifo evangelho de Tiago coloca que José viveu até os 111 anos abençoado com juventude e saúde. Saramago não vê benção na vida de José, e sabe que a vida do pai influi decisivamente na vida do filho. Jesus sofrerá com a pressão imperial que recaiu sobre José, exercida pelo seu outro, e verdadeiro, pai.

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

Tarde futuro

No Estado está tudo errado
No mercado está tudo caro
Você vendo por inteiro
O cara da banca não vende
O cigarro que eu quero

Meu dinheiro está no banco da praça
Que já não é mais minha                                        
O tempo que passa com vento
Transforma a areia em duna
Ferida rasa em funda
Fogo em fúria em latinha

Dado o veto ao voto
Voz ao discreto
Rua ao protesto
Ainda ganho na loto
Cansei de migalhas
Vou partir pro milagres
Vou morder o recheio
Do biscoito e do beijo

De todas as tardes
Quero do sol
Só uma parte.