Aviso – A razão de ser da crítica é
dialogar com a obra, lhe dotar sensações e sentidos percebidos por quem critica
e transmiti-los. Colocando a obra em contato com a realidade que presencia, é
atribuído o caráter de trabalho mútuo em progresso. Rejuvenesce o feito do
artista. A arte concede brilho e dinamismo ao conhecimento, por isso, também, é
tão perigosa. Esse esboço de uma análise da grande obra de Saramago pode
“estragar a surpresa” da obra, revelando detalhes e finais, o que pode
decepcionar quem pense que a arte se trate apenas de detalhes e finais. Esse
pensamento é o mesmo que considerar observar um mapa substitui a viagem ou o
resultado de uma partida de futebol vale pelo jogo. Então, como disse Maquiavel,
“se é para fazer o mal, faça-o de uma vez”, deste já o final é antecipado: o
herói morre na cruz.
O Evangelho de
Saramago
Já sabemos,
que em Saramago, vírgula é vírgula, está presente a todo instante, dando a
escrita uma oralidade original, fluída e, assim mesmo, extremamente pessoal,
pois, o peso de cada vírgula é definido pela respiração do leitor, o ponto, por
sua vez, não é somente um ponto final, mas tem força e moral de uma exclamação,
dada a raridade deste no texto. Também é peculiar a Saramago a relação
estabelecida com o leitor, não um Eu-Tu, “Eu falo, tu escutas”, não, José faz
acordo e conclusões com o leitor sem buscar máscaras ou refúgios, ele não conta
uma história, mas conversamos sobre vidas vividas, o que abre brecha para
ficarmos a vontade nos devaneios, sem incomodarmos com passado ou futuro,
fatalidade ou pessoalidade.
A combinação
destes elementos, pontuação única e pessoalidade acordada, conferem a prosa
saramaguiana uma poderosa contundência poética, difícil não ser capturado e
envolvido pelas longas frases curtas, como em um rio, no qual mergulha-se sem
se imaginar a força da correnteza que arrasta para um mar infinito, não nos
enganemos com essa metáfora, a beleza não é destino, é caminho.
“Evangelho”
significa “A Boa Nova”, são quatro os santos que o narram na Bíblia, são Mateus,
são Marcos, são Lucas e são João. Destacam-se pelo seu caráter retórico
autoritário, de convencimento intimidador imposto pela divindade. Na versão de
Saramago para “a maior história já contada” a preocupação não é divinizar o
homem Jesus, mas aproximar a divindade do homem. Alguns críticos do Evangelho
de Saramago definem essa opção como “irônica”, oras irônica é a bíblia que quer
dos homens uma uniformidade que não corresponde à diversidade da raça humana. O
Jesus de Saramago não é único, nem mesmo é três, é múltiplo, carrega vários
universos. Como todos nós, aliás.
A pluralidade
é alcançada através das várias facetas assumidas pelo autor, de filósofo a
psicólogo. Poderíamos até chamar o escritor, e o próprio Cristo, de “Legião”, uma
vez que são tantos. O primeiro Saramago, no entanto, é um espectador de um
quadro renascentista que retrata o momento da morte de Jesus na cruz e o choro
das Marias. Jesus não é o único a morrer, ao lado dele morre dois Ladrões, um
homem oferece água e vinagre aos três condenados “e não faz diferença entre Jesus e os Ladrões, pela simples razão de que
tudo isto são coisas da terra, que vão ficar na terra, e delas se fez a única
historia possível”
A história de José
– Judeu na Palestina ocupada
No
quadro ressalta-se o sol que brilha na hora da morte, mas a vida de Jesus
começa em uma noite, como a maioria de nós, afinal, em geral acredita-se que o
melhor momento para a concepção é na escuridão da noite. As dicotomias vão além
da luz do dia e do breu da noite, sendo fundamentais no texto: deus e homem,
pai e filho, abandono e comunhão, e por fim, como não poderia deixar de ser,
vida e morte. Estas, no entanto, não são estáticas tornando-se relações
ambíguas. Para engravidar Maria, deus não utiliza grandes poderes divinos, mas
uma necessidade humana: “...José, perplexo, olhou o vulto da mulher,
estranhando-lhe o sono pesado, ela que o mais ligeiro ruído fazia despertar,
como um pássaro. Era como se uma força exterior descendo ou pairando sobre Maria
lhe comprisse o corpo com o solo ... Estará mal, pensou, mas eis que um sinal
de urgência o distraiu da preocupação incipiente, uma instante necessidade de
urinar, também ela muito fora do costume...”
Na noite
após o humanissímo xixi de José, o casal José e Maria – sempre ela depois dele,
pois como lembra Saramago, “as mulheres são secundarias em tudo, basta
lembrar uma vez mais, e não será a ultima, que Eva foi criada depois de Adão e
de uma sua costela, quando será que aprenderemos que há certas coisas que só
começamos a perceber quando nos dispusermos a remontar as fontes” – recebe
a visita de um misterioso mendigo que pede comida. Maria sacia a fome da
misteriosa figura, que surpreende Maria com o anormal anuncio da incomum
gravidez. O mendigo coloca um bocado de terra na tigela em que come, para em
seguida revelar a Maria o que esperas. Ainda naquela mesma noite Maria fica com
a cabeça confusa diante de tantos fatos inusitados, pois “o pensamento,
afinal de contas, já por outros, ou o mesmo, foi dito, é como um grosso novelo
de fios enrolado sobre si mesmo, frouxo nuns pontos, noutros apertado até à
sufocação e ao estrangulamento, está aqui, dentro da cabeça, mas é impossível
conhecer-lhe toda a extensão, seria preciso, desenrola-lo, estende-lo, e
finalmente, medi-lo, mas isto, por mais que se intente, ou finja intentar,
parece que não o pode fazer o próprio sem ajudas, alguém tem de vir um dia
dizer onde se deve cortar o cordão que liga o homem ao seu umbigo, atar o
pensamento à sua causa.”
Corre o tempo na
Galileia, "A barriga de Maria crescia sem pressa, tiveram de passar-se
semanas e meses antes que se percebesse às claras o seu estado, e, não sendo
ela de dar-se muito com as vizinhas, por tão modesta e discreta ser, a surpresa
foi geral nas redondezas." Chega à notícia do recenseamento imposto
pelo Império: todos os chefes de família deveriam voltar à terra de origem para
terem suas informações coletadas pelos oficiais romanos. Assim, no final da
gravidez de Maria, a família ainda par, teria que se deslocar da pequena Nazaré
para a também diminuta Belém, aldeia próxima a Jerusalém. Na estrada, José se
encontra com as angústias e temores da paternidade, e é com um rabino que se
conforta e se defronta esses anseios: “Não falava do teu filho, falava das
mulheres e de como geram os seres que somos, se não será por vontade delas, se
é que o sabem, que cada um de nós é este pouca e este muito, esta bondade e
esta maldade, esta paz e guerra, revolta e mansidão”
Resistência hebraica a Roma |
Naturais dúvidas
que acometam pais no pré-natal, que se dissolvem no primeiro choro da criança. “O filho de José e Maria nasceu como todos os
filhos dos homens, sujo do sangue de sua mãe, viscoso das suas mucosidades e
sofrendo em silêncio. Chorou porque o fizeram chorar, e chorará por esse mesmo
e único motivo.” Após o parto normal, Maria e seu rebento recebem a visita
de três pastores. O primeiro traz leite, o segundo queijo. O terceiro, mais
alto, entra e diz sem olhar para ninguém, que não Jesus:” Com estas minhas mãos amassei esse pão que te trago, com o fogo que só
dentro da terra há o cozi. E Maria soube quem ele era.”
Enquanto
celebrava-se o nascimento em uma gruta na Palestina, em outra parte da terra
que futuramente seria santa, o Rei Herodes agonizava. Temendo pelo futuro do
legado, Herodes manda matar todos os recém-nascidos da região. Dois soldados
distraídos conversam resignadamente sobre a natureza cruel do pedido, José ouve
o dialogo e corre apavorado para proteger da missão dada sua prole do
cumprimento. Somente a sua. Somente Jesus. Começa a partir daí o sofrimento
psicológico de José, fruto do seu egoísmo, mas também resultado de uma ocupação
estrangeira em terras alheias.
José
não consegue mais dormir, quando são e salvos voltem para Nazaré, “o sono é seu inimigo de todas as noites”.
A culpa atrapalha o sono, mas não as noites de José, de modo que os irmãos de
Jesus vão se multiplicando. Uma vida normal na terra ocupada da Galiléia.
Nesse
meio-tempo, os metódicos romanos aperfeiçoam o recenseamento. Ao invés das
famílias se deslocaram a áreas centrais, os oficiais do Império que partem por
todos os cantos sob a égide romana. Tal evolução aumenta com efetividade o
recolhimento dos tributos, na mesma proporção cresce a insatisfação do povo
hebreu. A ocupação da Palestina por forças militares estrangeiras sufoca os
anseios dos judeus.
Um paralelismo
semântico brilhante. Saramago retoma a obscura história do patriarca da família
de Jesus para simbolizar a atual história dos palestinos em Israel. Contando
uma história olvidada, a vida de José pós-natal, Saramago narra todas as outras
vidas esquecidas. Mostra como perdemos referências básicas: no berço do
cristianismo, um dos pilares da civilização ocidental, as mesmas atrocidades e
injustiças que afetaram Jesus e sua família ainda ocorrem com outros inocentes.
O múltiplo
Saramago aborda a questão por diversos ângulos, colocando passado e presente,
tão distantes em tempo, próximos em ações. Quando a família deixava Jerusalém “tão irradiante vai em sua felicidade que
uns toscos e brutos mercenários gauleses,
louros, de grandes bigodes pendentes, armas postos, mas afinal, supõe-se, de
terno coração deste renovo do mundo que é uma jovem mãe com o seu primeiro
filho, estes guerreiros endurecidos sorriam à passagem da família, com podres
dentes sorriam, é certo, mas o que conta é a intenção.” A comparação
alusiva com os franceses atuais é hilária, mas não cabe aqui. Em 49 antes da
história desse evangelho, Julio Cesar conquista definitivamente a Gália, os
gauleses passam a ser tributados do império. Roma “globalizava” o mundo em que
mandava. A presença de outros povos, era a presença do domínio não importando
quem estava antes na terra ou não. Ainda bem que esses gauleses eram
sorridentes. Gauleses mercenários a serviço do império podem mandar na terra
mais do que judeus há anos na terra, só pelo fato de estarem a serviço de Roma?
O tempo
presente é usada de forma espetacular em outro período, que narra a saída da
família de Jerusalém: “Ficariam, pois,
dois ou três dias mais, fariam as suas despedidas em boa e devida forma, com
tais e tantas que vênias que não ficariam duvidas nem dividas, e então, sim,
poderiam partir, deixando nos habitantes de Belém a recordação feliz duma
família de galileus piedosos, bem-educados e cumpridores do dever, execepção
assinalável, se tivermos em conta a fraca opinião que os habitantes de
Jerusalém e arredores, no geral, fazem da
gente da Galileia”. O contraste entre os tempos dos verbos salta aos olhos,
“fazem” é o contrário, é uma constante. A Galileia não fica nas Cisjordânia ou
em Gaza, assim, não está nas terras que os palestinos revindicam, mas o texto
de Saramago não se preocupa com pormenores geográficos. Ressalte-se a
permanência do preconceito, algumas ideias ficaram no passado, mas o
preconceito como arma de dominação continua atual e atuante.
“Havia
os que não cediam, poucos, e por isso morriam, e outros que, tendo aprendido a
melhor lição, de que, ocupante bom é, justamente, e também, ocupante morto,
tomaram em armas e foram para as montanhas. Diz-se armas, e elas eram pedras,
fundas, paus, cacetes e cachaporras, alguns arcos e flechas, apenas o
suficiente para começar uma intifada,
e, lá mais para a frente, umas tantas espadas e lanças apanhadas em rápidas
escaramuças, mas que chegada a hora, de poucos lhes podiam servir, tão
habitualmente andavam, desde David, à impedimenta rústica, de benévolos
pastores e não de guerreiros convictos” Poucas expressões são tão
eloquentes quanto “intifada”. O termo, do árabe, significa “revolta”,
entretanto, “Intifada” já perdeu muito da sua definição genérica, sendo
designada para nomear a defesa dos palestinos contra a violenta ocupação
militar dos israelenses. A reação dos palestinos é aproximadamente dois mil
anos mais nova do que a dos judeus da época de José, contudo a luta se dá
basicamente da mesma forma: contra um exército opressor, muita vezes
extremamente cruel, armam-se com pedras,
fundas, paus. A palavra “Intifada” nesse trecho vai além de “resistência”
ou “revolta”, os judeus que fundaram a intifada, legitimamente, contra os seus
opressores romanos. Saramago faz da palavra que hoje separa os dois povos um
denominador comum para ambos, ligando o passado ao futuro, sem, no entanto, se
esquecer quem é o agressor e quem é o agredido, quem está com pedras, fundas, paus, e quem está com o
exército imperial.
Desde que o
mundo é mundo, pessoas buscam na guerra um refúgio para suas mazelas, querem a
força que a vida os renega. Não é o caso de José, é o caso sim do seu vizinho Ananias,
que impossibilitado de ter filhos, vê na intifada judaica um sentido para a
existência, “Vou para guerra como se
pensasse fazer um filho”. Ananias parte para seu pessoal inverno da
cultura, em busca da sua paz parte para a guerra. Como manda o costume das
comunidades simples, o próximo vela pela casa do seu vizinho. Não tarda, no
entanto, para chegar a péssima nova: Ananias encontra-se ferido na cidade de Séforis,
vizinha a Nazaré. José, agora não tem um vizinho para vigiar sua casa durante a
jornada, mas com o peso do remorso da morte das crianças que o ataca todas as
noites, se dirige ao resgate de Ananias.
Em
um armazém de Séforis, ferido a beira da morte, está Ananias. O resgate falha,
as feridas vencem, Ananias morre, resta a José dar uma despedida digna. O que
também não é possível, uma vez que o burro que o trouxe até é roubado. O
desespero toma conta de José, sabia que chegara a hora da condenação definitiva.
”Deus não perdoa os pecados que manda
cometer” Na procura infrutífera pelo animal, José é preso pelos romanos que
após um breve interrogatório levaram-no para a praça da cidade junto com outros
prisioneiros, “percebendo que os homens
que ali estavam eram rebeldes, protestou, Sou carpinteiro e gente de paz, e um
dos que estavam sentados disse, Não conhecemos este homem, mas o sargento que
comandava a guarda dos prisioneiros não quis saber, com um empurrão fez cair
José no meio dos outros, Daí só sais para morrer.”
O
pai de Jesus vê os outros 39 prisioneiros serem crucificados racionalmente, com
atenção a economia de materiais e esforços e visando a eficácia. O último a ser crucificado vê o sofrimento de
toda a gente com a cidade sem aniquilada pelo romanos, enquanto os crucificados
iam morrendo um por um. “O carpinteiro,
chamado José filho de Heli, era um homem novo, na flor da vida, fizera há pouco
dias trinta e três.”
Sara para Sharon |
O
brilhante Saramago dedica a primeira parte do Evangelho a renegada figura paterna
de Jesus, fazendo da jornada esquecida uma parábola para o conflito que ainda
alimenta a terra santa com sangue: os judeus foram reprimidos, humilhados e
massacrados por tropas a serviço de um império, não por serem de outra etnia ou
seguirem outro Deus, não. Os hebreus não aceitam serem submissos, serem negados
do direito a autodeterminação, serem privados da liberdade completa. A revolta
é filha da opressão.
Saramago tem
um domínio absurdo da língua lusa, fazendo não só do enredo propriamente a alegoria,
mas cada elemento da linguagem, cada ponto de reflexão dos personagens serem
permeados pela dominação romana. O sofrimento particular do indíviduo não é
independente da política, mas está totalmente inserido no contexto. Cada vida
humana é afetada pela opressão. A dominação prolongada marca de maneira indelével
o espírito do individuo para atingir o povo por completo, negando o direito a própria
existência como tal. A linguagem é um instrumento de afirmação ou de confrontamento
do domínio. Se houvesse uma “Folha de Roma” ou um “Império Times” ou outro
jornal que servisse como eco do império, sem dúvida teria a mesma preocupação
com inocentes e culpados que o sargento romano, estampando nas manchetes “Terroristas condenados” ou “Rebelião controlada”. Vale lembrar que “O
Evangelho de Saramago” foi o último livro a entrar no Index, a lista de livros
banidos pela Igreja de Roma. Com a linguagem da rebeldia, Saramago lembra que a
Palestina não é só a Judéia, e que Israel não é um lugar, muito menos um
Estado, mas uma percepção religiosa.
A sociedade
ocidental se baseia nos mitos que esquece, Jesus também morrerá como um
terrorista, só que ao contrário do José, não como mais um, mas como o principal
agitador.
O destino de
José, depois de Cristo, não está especificado na Bíblia. Seu papel foi restrito
a coadjuvante dos acontecimentos entre o Espírito Santo e Maria. O apócrifo evangelho
de Tiago coloca que José viveu até os 111 anos abençoado com juventude e saúde.
Saramago não vê benção na vida de José, e sabe que a vida do pai influi decisivamente
na vida do filho. Jesus sofrerá com a pressão imperial que recaiu sobre José, exercida
pelo seu outro, e verdadeiro, pai.