Um dos mais danosos vícios do
estudo histórico do Brasil é o “sudestecentrismo”, focado especificamente em um
“riocentrismo”. Evidentemente, a cidade do Rio de Janeiro ocupa um lugar de
destaque na história brasileira, em especial do desembarque da corte na Praça
XV a inauguração de Brasília, contudo esse peso carece de relativização. As conquistas políticas ocorridas no século
XIX, independência, proclamação da República e abolição da escravidão foram
logradas apesar dos seguidos governos autoritários, sediados primeiro na Quinta
da Boa Vista e depois no Palácio do Catete. As reais lutas sociais tiveram como
cenários os mais diversos recantos do país, tanto no interior quanto nas
cidades. Sempre longe dos palácios.
O caso historiograficamente mais emblemático
é o da independência do Brasil. A versão oficial passa longe da realidade e da importância
dos acontecimentos. O Brado retumbante do ouvido às margens plácidas do Ipiranga
no 7 de Setembro de 1822 ,em uma viagem Rio - São Paulo (!), não foi ouvido
pelo povo heroico. Desde a vinda da corte, a relação colônia – metrópole fora definitivamente
abalada, a traumática ruptura não começou nem terminou em setembro 1822. Foi um
longo e doloroso processo que tomou o imenso território brasileiro por décadas.
Maria Quitéria, com o saiote histórico |
Destaca-se as lutas e movimentos
em Pernambuco, São Paulo, Pará, Ceará e Minas Gerais. Mas nenhuma outra das
batalhas do processo de independência custou tantos corpos quanto a Independência
da Bahia. Quando explode a revolta liberal no Porto, são as capitais
nordestinas que mais sentem suas repercussões. Enquanto, a indignação da elite fluminense
se preocupava com a perda dos privilégios com o fim da proximidade da corte, outros
centros do Brasil debatiam o futuro imediato mais seriamente. Na Bahia, onde
havia número igual de portugueses a da capital, as discussões rapidamente se
tornaram conflitos armados. Se quase toda gente recebeu bem a liberalização vinda
do Porto, não foram poucos os lusos que não aceitaram o descumprimento constitucional
do príncipe regente com a declaração do Dia do Fico. Entre as várias batalhas
sangrentas, ressaltam-se as atuações heroicas de duas mulheres que o enorme
reconhecimento da sociedade machista à época não deixa espaço para a superestimação.
A ocupação portuguesa na progressista
Bahia era tumultuada e violenta, aumentando a intensidade das arbitrariedades
no pós-fico. Com o pretexto de perseguir revoltosos, os soldados lusos cometem
excessos atrás de excessos, culminando na invasão do Convento da Lapa. Temendo
pela castidade e vida das internas, a Abadessa Joana Angélica, madre-superiora
da instituição, impede com o corpo a entrada dos soldados ensandecidos: “Para trás, bandidos. Respeitem a Casa de Deus.
Recuai, só penetrareis nesta Casa passando por sobre o meu cadáver.” A
casa foi penetrada como a baioneta penetrou o tronco de madre. O mátir da
religiosa atiçou a fúria de uma sociedade profundamente espiritualizada.
Nossa Mulan: guerreira imperial |
Uma das teses mais comuns em
análises da historia do Brasil é a de que o “povo assistiu bestializado” aos
eventos, como a independência. Essa visão encontra motivação em sua própria
argumentação. O povo do Brasil, em toda sua diversidade, participa ativamente da
construção política, cultural e social, portanto também política, do país. O
que lhe carece é alguma representação. Os intelectuais e políticos da elite econômica
“nacional” sempre procuraram retratar a si mesmos como principais agentes das
transformações, das quais, na prática, costumam serem mais obstáculos. Bestializam-se
as camadas populares para ausenta-lo de sentido. O povo é protagonismo de uma
história não vista.
Onde o Rio é mais Bahia |
O papal de destaque da independência
da nação de um estado dito periférico, cujo uma mulher mulata guerreira escreve
as páginas mais belas, não é lembrado. Aliás, o termo correto deveria ser “é
esquecido”, pois não é por acaso que se ignora essas histórias. Como a independência
do Brasil apaga as independênciaS do
Brasil, a história do Brasil exclui aS históriaS do Brasil. Ainda há tempo de
se escrever as histórias do país plural. Como a baiana mulata peladora, o
processo não findou há espaços para empreitadas diversas de rara beleza.
Pelas ruas e lutas, o coqueirão - Se a Mangueira é, como canta com
propriedade Caetano, “onde o Rio é mais baiano”, cabe a Praia de Ipanema talvez
ser onde o Rio é mais Bahia. A praia dos alternativos e vanguardismos clássicos
dos cariocas se localiza na avenida que homenageia um engenheiro da Republica
Velha, Vieira Souto. Entretanto, a referência da avenida principal é secundária.
O estandarte na areia é o coqueirão, fina árvore, mal faz sombra aos adoradores
do astro, escolheu bem quem limita seus domínios cosmopolitas. A juventude carioca
tem como base as heroínas baianas do Brasil, que paralelas da Lagoa deságuam na
praia. Nada mais carioca por uma via baiana. Nossa história está espalhada por
todo canto da cidade, mas também de todo o país. Maria e Joana guiam os
bem-aventurados: O caminho do sol é a trilha aberta pelas guerreiras baianas.
Perdão para os torcedores do Vitória, mas na Bahia a obrigação é torcer pelo Baêa
Excelente texto Luã! Muito bom mesmo!
ResponderExcluirComo disse ao final de seu texto, "o caminho do sol é a trilha aberta pelas guerreiras baianas".
Ou em outros termos, de acordo com o Hino ao 2 de Julho (que só em 2010 virou o oficial Hino da Bahia, muito embora já o fosse informalmente, visto que antes o hino oficial era o Hino ao Senho do Bonfim):
"Nasce o sol a 2 de julho
Brilha mais que no primeiro
É sinal que neste dia
Até o sol é brasileiro.
Nunca mais o despotismo
Regerá nossas ações
Com tiranos não combinam
Brasileiros corações."
Sendo o primeiro sol o da proclamação da Independência, o 7 de Setembro... e o segundo sol, o que mais brilhou, o sol verdadeiramente brasileiro... o 2 de Julho.
(PS: Sou Vitória XD)
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