terça-feira, 3 de julho de 2012

2 de Julho – A independência da Bahia contra o histórico riocentrismo: duas guerreiras na Praia de Ipanema.



Um dos mais danosos vícios do estudo histórico do Brasil é o “sudestecentrismo”, focado especificamente em um “riocentrismo”. Evidentemente, a cidade do Rio de Janeiro ocupa um lugar de destaque na história brasileira, em especial do desembarque da corte na Praça XV a inauguração de Brasília, contudo esse peso carece de relativização.  As conquistas políticas ocorridas no século XIX, independência, proclamação da República e abolição da escravidão foram logradas apesar dos seguidos governos autoritários, sediados primeiro na Quinta da Boa Vista e depois no Palácio do Catete. As reais lutas sociais tiveram como cenários os mais diversos recantos do país, tanto no interior quanto nas cidades. Sempre longe dos palácios.  

O caso historiograficamente mais emblemático é o da independência do Brasil. A versão oficial passa longe da realidade e da importância dos acontecimentos. O Brado retumbante do ouvido às margens plácidas do Ipiranga no 7 de Setembro de 1822 ,em uma viagem Rio - São Paulo (!), não foi ouvido pelo povo heroico. Desde a vinda da corte, a relação colônia – metrópole fora definitivamente abalada, a traumática ruptura não começou nem terminou em setembro 1822. Foi um longo e doloroso processo que tomou o imenso território brasileiro por décadas.

Maria Quitéria, com o saiote histórico 
Destaca-se as lutas e movimentos em Pernambuco, São Paulo, Pará, Ceará e Minas Gerais. Mas nenhuma outra das batalhas do processo de independência custou tantos corpos quanto a Independência da Bahia. Quando explode a revolta liberal no Porto, são as capitais nordestinas que mais sentem suas repercussões. Enquanto, a indignação da elite fluminense se preocupava com a perda dos privilégios com o fim da proximidade da corte, outros centros do Brasil debatiam o futuro imediato mais seriamente. Na Bahia, onde havia número igual de portugueses a da capital, as discussões rapidamente se tornaram conflitos armados. Se quase toda gente recebeu bem a liberalização vinda do Porto, não foram poucos os lusos que não aceitaram o descumprimento constitucional do príncipe regente com a declaração do Dia do Fico. Entre as várias batalhas sangrentas, ressaltam-se as atuações heroicas de duas mulheres que o enorme reconhecimento da sociedade machista à época não deixa espaço para a superestimação.         

A ocupação portuguesa na progressista Bahia era tumultuada e violenta, aumentando a intensidade das arbitrariedades no pós-fico. Com o pretexto de perseguir revoltosos, os soldados lusos cometem excessos atrás de excessos, culminando na invasão do Convento da Lapa. Temendo pela castidade e vida das internas, a Abadessa Joana Angélica, madre-superiora da instituição, impede com o corpo a entrada dos soldados ensandecidos: “Para trás, bandidos. Respeitem a Casa de Deus. Recuai, só penetrareis nesta Casa passando por sobre o meu cadáver.” A casa foi penetrada como a baioneta penetrou o tronco de madre. O mátir da religiosa atiçou a fúria de uma sociedade profundamente espiritualizada.
Nossa Mulan: guerreira imperial

Uma dessas impelidas a luta pela morte de Joana Angélica foi Maria Quitéria. Deflagradas as lutas de apoio à independência em 1822, o Conselho Interino do Governo da Bahia, defendia o movimento e procurava voluntários para suas tropas. Maria Quitéria, interessada em se alistar, pediu permissão ao seu pai, mas seu pedido foi negado. Com o apoio de sua irmã Tereza Maria e seu cunhado José Cordeiro de Medeiros, Quitéria cortou o cabelo, vestiu-se de homem e se alistou com o nome de Medeiros,o Soldado Medeiros, no Batalhão dos Voluntários do Príncipe, chamado de Batalhão dos Periquitos, por causa dos punhos e da gola verde em seu uniforme. De soldada foi promovida a cadete, por conta de atos de bravura na Batalha de Pituba pela defesa da Ilha de Maré, tendo assim recebido uma espada, algo absurdamente excepcional para uma mulher no século XIX. Quando o Exército Libertador entra em Salvador triunfante, Maria, com seu uniforme azul com uma saia feito por ela mesma, é saudada e festejada como heroína. O próprio Imperador Dom Pedro I condecorou a brava baiana: “Querendo conceder a D. Maria Quitéria de Jesus o distintivo que assinala os Serviços Militares que com denodo raro, entre as mais do seu sexo, prestara à Causa da independência deste Império, na porfiosa restauração da Capital da Bahia, hei de permitir-lhe o uso da insígnia de Cavaleiro da Ordem Imperial do Cruzeiro ".
Uma das teses mais comuns em análises da historia do Brasil é a de que o “povo assistiu bestializado” aos eventos, como a independência. Essa visão encontra motivação em sua própria argumentação. O povo do Brasil, em toda sua diversidade, participa ativamente da construção política, cultural e social, portanto também política, do país. O que lhe carece é alguma representação. Os intelectuais e políticos da elite econômica “nacional” sempre procuraram retratar a si mesmos como principais agentes das transformações, das quais, na prática, costumam serem mais obstáculos. Bestializam-se as camadas populares para ausenta-lo de sentido. O povo é protagonismo de uma história não vista.

Onde o Rio é mais Bahia
O papal de destaque da independência da nação de um estado dito periférico, cujo uma mulher mulata guerreira escreve as páginas mais belas, não é lembrado. Aliás, o termo correto deveria ser “é esquecido”, pois não é por acaso que se ignora essas histórias. Como a independência do Brasil apaga as independênciaS do Brasil, a história do Brasil exclui aS históriaS do Brasil. Ainda há tempo de se escrever as histórias do país plural. Como a baiana mulata peladora, o processo não findou há espaços para empreitadas diversas de rara beleza.
                                                                                           
Pelas ruas e lutas, o coqueirão - Se a Mangueira é, como canta com propriedade Caetano, “onde o Rio é mais baiano”, cabe a Praia de Ipanema talvez ser onde o Rio é mais Bahia. A praia dos alternativos e vanguardismos clássicos dos cariocas se localiza na avenida que homenageia um engenheiro da Republica Velha, Vieira Souto. Entretanto, a referência da avenida principal é secundária. O estandarte na areia é o coqueirão, fina árvore, mal faz sombra aos adoradores do astro, escolheu bem quem limita seus domínios cosmopolitas. A juventude carioca tem como base as heroínas baianas do Brasil, que paralelas da Lagoa deságuam na praia. Nada mais carioca por uma via baiana. Nossa história está espalhada por todo canto da cidade, mas também de todo o país. Maria e Joana guiam os bem-aventurados: O caminho do sol é a trilha aberta pelas guerreiras baianas.  

                         Perdão para os torcedores do Vitória, mas na Bahia a obrigação é torcer pelo Baêa

2 comentários:

  1. Excelente texto Luã! Muito bom mesmo!

    Como disse ao final de seu texto, "o caminho do sol é a trilha aberta pelas guerreiras baianas".

    Ou em outros termos, de acordo com o Hino ao 2 de Julho (que só em 2010 virou o oficial Hino da Bahia, muito embora já o fosse informalmente, visto que antes o hino oficial era o Hino ao Senho do Bonfim):

    "Nasce o sol a 2 de julho
    Brilha mais que no primeiro
    É sinal que neste dia
    Até o sol é brasileiro.

    Nunca mais o despotismo
    Regerá nossas ações
    Com tiranos não combinam
    Brasileiros corações."

    Sendo o primeiro sol o da proclamação da Independência, o 7 de Setembro... e o segundo sol, o que mais brilhou, o sol verdadeiramente brasileiro... o 2 de Julho.

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