segunda-feira, 16 de julho de 2012

O esquecimento é o que acontece – Cartola e Nietzsche se encontram em um jardim




                                                                               Gal acontece

“Não poderia haver felicidade, jovialidade, esperança, orgulho, presente, sem o esquecimento.” Assim concluiu Nietzsche na segunda dissertação de A Genealogia da Moral. O esquecimento, ressalta o filósofo bigodudo, não é uma consequência passiva de um lapso memorial. O esquecer, pelo contrário, é uma atitude afirmativa necessária para uma existência plenamente autêntica. O oposto dessa pulsação de esquecimento, fiadora da felicidade, é a consciência humana, base da moralidade. Simplificadamente, a consciência é o pensamento mais profundo do individuo, particularmente concernente ao sentido virtual de certo e errado. Nietzsche, em A genealogia, associa o surgimento da consciência com inicio da estrutura social e da criação de leis, que por sua vez dependem da repressão do instinto e do desenvolvimento de um tipo especifico de racionalidade: “finalmente tomamos partidos contra nós mesmos, ficamos doentes e nos punimos.” Nessa cadeia social, a consciência é a cela cujo carcereiro e o preso é a mesma pessoa, o indivíduo.

Todos os instintos que não são liberados atuam internamente. Isso é o que chamo interiorização” Já disse Nietzsche bem antes de Freud. Se a chave para superar a prisão da consciência é o esquecimento, o caminho oposto da interiorização é, obviamente, seu inverso, a exteriorização. O instinto nesse processo não é domado, mas estimulado como desejo, esse dialogando com o que de novo há no mundo exterior. Um dos vários nomes com o qual se pode nomear essa fenômeno do “que há de novo no mundo” é de “acontecimento”. O acontecimento do novo é, portanto, manifestação encarnada do desejo, isto é, a vontade, permitida somente pela capacidade de esquecimento. Alguns chamariam essa vontade de “amor”. Para o novo amor é necessário o novo esquecimento.



Cartola simplifica:                

Acontece                                                                  

Esquece o nosso amor
Vê se esquece.
Porque tudo na vida acontece
E acontece que eu já não sei mais amar.
Vai sofrer, vai chorar
E você não merece,
Mas isso acontece.


Alguns versos em determinadas estruturas poéticas se salientam mais que os outros para uma compreensão apolínea do texto. No caso de Acontece, começamos pelos últimos versos do par de estrofes: a primeira termina com “mas isso acontece”, mostrando resignação perante o inevitável fardo da vida; a segunda estrofe, negando, conclui “isso não acontece”, definido a partir da reconhecida, de maneira fria e dura, impossibilidade de atuar. O primeiro verso oferece, o segundo quase imperativamente exige a aceitação do esquecimento: “Vê se esquece” E por que esquecer, Cartola? “Porque tudo na vida acontece”.

Analisando mais amplamente, nota-se que a primeira estrofe tem sete versos, sendo o primeiro um verso branco, ou seja, não possui um par com o qual rime. Esse verso solitário é justamente “Esquece o nosso amor” Na poesia de Cartola o amor muitas vezes não rima. Para o verso não ficar manco, isto é sem rima alguma, o poeta opta por repetir esquece, reforçando o sentido do esquecimento logo no princípio da obra.

Enquanto o drama da primeira estrofe reside no reconhecimento melancólico da incapacidade do amante “E acontece que eu já não sei mais amar”, na segunda o conflito se deve a outra potencialidade negada, não por incapacidade, mas por vontade “Se eu ainda pudesse fingir que te amo”. A resultante da primeira é o sofrimento passivo: “Vai sofrer, vai chorar”, o desenrolar da segunda, novamente, é uma resistência da vontade “Mas não posso, não devo fazê-lo”

As estrofes em dois resumos minimalistas anti-poético poderiam ser, a primeira: “Esqueça e aceite, tudo acontece até o que não quero e é injusto”. A segunda, no mesmo estilo, seria: “Poder o que eu não quero não acontece”. Com uma dose certa de beleza, seriam dois aforismos bem Nietzscheano.  
             
Acontece que o meu coração ficou frio
E o nosso ninho de amor está vazio.
Se eu ainda pudesse fingir que te amo,
Ah, se eu pudesse
Mas não posso, não devo fazê-lo,
Isso não acontece.


           Não só para indivíduos, a criação cultural de uma sociedade estaria ligada a capacidade desta conseguir superar a história, ou seja, esquecer para cultivar o novo. Na metade final do século XIX, em meio a unificação alemã, borbulhava o debate em torno da necessidade da história para o fortalecimento cultural de uma nação e de um povo. A opinião de Nietzsche era uma das mais polêmicas: a história servia para uma educação limitada e enciclopédica, engessando decisivamente a cultura, como “um crocodilo a engolir a um antílope”. O esquecimento, a ignorância histórica proposital, levaria a uma cultura radicalmente inovadora, que seria verdadeiramente atraente para o novo, para a nova geração, para a juventude. Do contrário o desinteresse cultural triunfaria, o “coração ficaria frio”. Não só isso, Nietzsche alertava que as consequências de uma absorção cultural exterior - sem o esquecimento permitindo o acontecimento – seriam imprevisíveis. A história alemã no século XX, ironicamente, deu razão ao bigode. Faltou esquecimento.



Um poeta poderia dizer que Deus instalou o esquecimento como guardião da soleira do templo da dignidade humana” Nietzsche em Humano, demasiado Humano


                 Nietzsche em o Nascimento da Tragédia, primeiro dos seus livros, compara o surgimento do teatro entre os gregos como o “desabrochar das rosas em uma noite espinhos”. A medida em que vai escrevendo, Nietzsche vai confrontando a si mesmo e se refazendo, sem nunca, no entanto abandonar as floridas metáforas. Em Aurora, o alemão compara o trabalho de um filosofo diante da história com de um jardineiro: A partir das raízes difusas e horrendas, chega-se a sublime harmonia das pétalas de rosas. Cartola sintetizou parte desse pensamento em outra canção igualmente brilhante, através do singelo e poderoso verso: “As rosas não falam”. De longe passeando pelo mesmo jardim, com olhar atento e ar distraído para as mesmas flores, enquanto ajeita o bigode do futuro, o filósofo observaria: “Certamente elas não falam, as rosas superam

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