"Não vou renunciar. Colocado no caminho da História pagarei com minha vida a lealdade do povo. E digo que tenho certeza de que a semente que deixamos na consciência digna de milhares e milhares de chilenos não poderá ser ceifada definitivamente. Eles têm a força, poderão submeter-nos, porém não deterão os processos sociais nem com crimes nem com a força. A história é nossa e é feita pelo povo".
- últimas palavras de Salvador Allende transmitidas por rádio durante o cerco ao La Moneda.
O uso e abuso da história - Pelas coincidências que só a
história oferece através do calendário, o Chile enfrenta a Colômbia pelas
eliminatórias, no emblemático 11 de Setembro. Nesse dia em 1973, o presidente,
eleito democraticamente, Salvador Allende, sofreu um golpe que instaurou uma
ditadura sanguinária. O jogo de hoje seria no Estádio Nacional de Santiago, palco
de torturas e execuções durante a ditadura Pinochet. A torcida, nome dado ao
povo no estádio, do Chile preparava manifestações, a maioria saudosas homenagens
a Salvador, o valente.
O que faz a FIFA? Proíbe o jogo de ser realizado no Estádio
Nacional alegando manter o caráter “apolítico” da entidade. Atitude condizente
com o caráter hipócrita da organização que monopoliza o jogo.
O Chile joga contra ninguém e faz o gol mais triste de todos |
Pouco tempo depois do golpe, no
mesmo ano, o Chile enfrenta a União Soviética pela repescagem da Copa do Mundo
de 1974. O local escolhido para o jogo da volta foi o Estádio Nacional, aquele
mesmo dos massacres e masmorra da dignidade humana. Os jogadores da URSS se
recusam a entrar no campo com uma declaração que entraria para a história: “Não
jogaríamos em Auschwitz, não vamos jogar aqui.” De nada adianta o protesto
soviético, a seleção chilena entra em campo sozinha e marca o gol mais triste
do futebol, contra ninguém pois seu adversários se solidariza com a o
sofrimento do seu povo. A FIFA confirma a vitória do Chile, classificado para a
Copa, e pune a URSS, com a exclusão de competições internacionais. A entidade a
época era dirigida por Stanley Rous, notório defensor do Apartheid. Em 1961, a
África do Sul brutalmente segregacionista é expulsa da Confederação Africana,
Stanley não hesita em defender o que acredita: suspende todos os países
africanos da entidade em resposta ao boicote contra o racismo, exceto, claro, a
África do Sul branca.
Ao invés de jogadores, soldados e mortes |
Assim a FIFA se fez, e se faz, apolítica:
impedindo manifestações democráticas e tudo que pode parecer popular. “Apoliticamente”,
a cínica FIFA serve como instrumento para ditaduras que bebem sangue do próprio
povo e regimes violentamente racistas. A classificação da seleção chilena para
a Copa de 74, baseada no fantástico time do Colo-Colo de 73, evidentemente foi
utilizada por Pinochet. Da mesma maneira, a manutenção da África do Sul racista
nos quadros da FIFA, em detrimento, de todo o continente legitimou o regime do
Apartheid.
Não se trata da atitude isolada
de um presidente em uma época especifica, a FIFA sempre soube entender onde
estava o poder e com quem estava o dinheiro. Sempre contou com a cumplicidade
da mídia, que exemplarmente demonizava a URSS e citava a África do Sul e Chile
como sucessos de ordem. A mídia ecoa a linguagem FIFA: os interesses da FIFA
são sempre chamados de “exigências” pelos jornais, a escandalosa corrupção são
ditas “transações” e o autoritarismo é batizado “questões de seguranças”, como
a vergonhosa proibição do jogo em um templo do esporte mausoléu do povo
chileno. Valente, a hincha do Chile não cederá, homenageará seus heróis e
reverenciará seus mortos, apesar das covardias com o selo FIFA. Cabe ao Brasil
se solidarizar com o passado e presente dos amigos ao sul, mas com um olho
aberto para o futuro: a Copa de 2014 está aí. A história também, ninguém se esqueceu
de quando se jogou e não se jogou no Estádio Nacional.
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