quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Festa imodesta e o Nascimento da Tragédia

Para explicar a relação entre os impulsos diversos que atuavam no intelecto helênico, Nietzsche retoma ao um velho mito em o Nascimento da Tragédia. Conta que certa vez o rei Midas captura Sileno, companheiro constante do deus Dionísio, e lhe pergunta “Qual a maior felicidade do homem?” O semideus permanece calado, imóvel e mal-humorado até que forçado pelo rei finalmente fala: “Estirpe miserável e efêmera, filhos do acaso e do tormento! Por que me obrigas a dizer-te o que seria para ti mais salutar não ouvir? O melhor de tudo é para ti inteiramente inatingível: não ter nascido não ser, nada ser. Depois disso, porém, o melhor para ti é logo morrer”
              
  A percepção pessimista da vida, com seus medos, descaminhos e falta de sentido, contudo, não gera um sentimento anti-vida nos gregos. Pelo contrário, tal noção estimula os gregos a criarem e se desenvolverem através dos seus deuses, explica Nietzsche: “O grego conheceu e sentiu os temores e horrores do existir: para que lhe fosse possível algum modo viver, teve de colocar entre ele e a vida a resplendente criação onírica dos deuses olímpicos” 



Dionísio, o deus do vinho, da orgia da e da sensualidade representa, portanto, o homem em seu estado mais primitivo. O culto ao deus é o culto ao próprio corpo, seus seguidores deixavam de lado a linguagem e a identidade para entrar em êxtase com a dança. Quem louvava Dionísio buscava uma fuga da prisão do eu, um caminho para o que há de mais intimo no ser. Seus meios para conseguir eram a música e a embriaguez coletiva. Essa era a resposta aprendida a condição descrita por Sileno.
Ou como canta Caetano em Festa imodesta:            
  
Minha gente
Era triste amargurada
Inventou a batucada
Pra deixar de padecer
Salve o prazer
Salve o prazer
Uma festa imodesta como esta
Vamos homenagear
Todo aquele que nos empresta sua festa
Construindo coisas pra se cantar
 

            
Contudo, esse culto oferecia um refúgio breve. O transe coletivo sentido pelos adoradores do deus os afastavam apenas por um momento do sentimento de isolamento e transitoriedade da vida humana. Sensações que nossa intuição não nos permite escapar. A verdade de Sileno sempre voltava.
                
 Se mergulhar na própria intuição só aumentava a ausência de sentido, como então escapar do terror da verdade? Com a justa medida oposta, glorificando e cultivando o oposto de Dionísio. Através de uma “resplendente criação onírica”, o deus Apolo. Apolo, o sol, deus da ordem, da razão representa o homem civilizado, incorporado no sonho da ilusão de escapar da verdade de Sileno, ainda sabendo que é impossível. O culto apolíneo gera otimismo. A insistência na forma, na beleza visual e na razão vai contra o frenesi irracional dionisíaco. “Apolo, como divindade ética, exige dos seus a medida, e para poder observa - lá, o autoconhecimento. E assim corre, ao lado da necessidade estética da beleza, a exigência do ‘Conhece-te a ti mesmo’ e ‘Nada em demasia’…“
               
Nietzsche deixa claro que mesmo sendo impulsos naturais opostos e autônomos metamorfoseados em deuses, Dionísio e Apolo, são complementares. A partir daí começa sua investigação dessa poderosa conjunção: Que resultados os deuses normalmente separados gera quanto postos frente a frente? Qual é o resultado da “otimização” apolínea do pessimismo dionisíaco? Sendo ainda mais claro, quais efeitos a música dionisíaca tem em relação à imagem apolínea?
                Dionísio canta o silêncio de Apolo. Apolo censura a bagunça dionisíaca, entre afirmação e negação, sobra a vida: 

Tudo aquilo que o malandro pronuncia
E o otário silência
Tudo aquilo que se dá ou não se dá
Passa pela fresta da cesta e resta a vida
           
Os conceitos, as imagens e os sentimentos ganham um significado mais elevado sob a influência da música. A arte dionisíaca, portanto, afeta o talento apolíneo de uma maneira dupla. Primeiro, a música nos incita a uma intuição simbólica do espírito dionisíaco, e, em segundo lugar, dá aquela imagem uma significação suprema. Nietzsche acredita que até o século VII a.C, os gregos não conheciam a verdadeira música, a música dionisíaca; eles conheciam apenas a música tocada por aedos que recitavam os poemas de Homero acompanhados pela cíatra, uma música apolínea. Essa modalidade de música foi assim definida por imprecisão de linguagem, já que manejava apenas as forças plásticas e arquiteturas e som: “enquanto batida ondulante do ritmo” recortava figuras nos tempo. Em termos teatrais podemos dizer que essa música estava mais próxima da sonoplastia atual.

 
A melhor versão de Festa imodesta é do Chico 


Para o filosofo, só mais tarde surge na Grécia a musica propriamente dita, a dionisíaca, que é expressão direta do querer, do prazer e da dor, daquilo que há de abstrato no mundo físico. “A violência comovedora do som” e a “torrente unitária da melodia e o mundo incomparável da harmonia”  são qualidades dessa música em geral tocada por flauta. A força dessa música era capaz de incitar o homem a uma intensificação de suas capacidades simbólicas. Com ela, a vontade, o intimo da natureza encontrava sua expressão corporal completa, na mímica, na dança e no canto cultural em honra ao deus Dionisio, o ditirambo dionisíaco.  “No estado dionisíaco o homem não é mais artista, tornou-se obra de arte: a força artística de toda a natureza para a deliciosa satisfação do uno - primordial, revela aqui sobre o frêmito da embriaguez”. Como já nos adverte no título a tragédia nasce a partir do espírito da música. No momento que o povo grego descobre o poder da musica dionisíaca, seu espírito engrandece e suas realizações se embelezam, “são como rosas a desabrochar na noite espinhosa.”

Acima do coração
Que sofre com razão
A razão que volta do coração
E acima da razão a rima
E acima da rima a nota da canção
Bemol natural sustenida no ar
Viva aquele que se presta a esta ocupação
Salve o compositor popular.


Além da clara influência de Shcopheuner, é possível notar o pensamento do poeta Schiller, que acredita que “certa disposição musical da mente vem primeiro e depois chega à idéia poética”. Tal definição se encaixa perfeitamente na percepção grega da existência a partir da descoberta/invenção da música. Nietzsche chama a tragédia de “uma nova consciência estética” para indicar que a trágica visão grega da não é apenas um modo de pensar o mundo, mas fundamentalmente uma maneira distinta de sentir o mundo, e somente a música pode nos levar a essa sensação.  “O espírito dionisíaco na musica nos faz entender que tudo que nasce deve ser preparado para enfrentar sua dolorosa dissolução. Ele nos força a olhar fixamente o horror da existência individual sem sermos transformados em pedra pela visão”.  Somente através da música podemos enfrentar a terrível mensagem de Sileno. A serena jovialidade dos gregos, seu bem-estar, calma e nobreza no mundo, vêm da compreensão dessa força “entregue” ao otimismo apolíneo. A bela máscara de Apolo escondia “uma horrível profundeza da consideração do mundo e sobre a mais excitável aptidão para o sofrimento” . Os gregos escolheram ilusão apolínea para suportar a vida do mesmo jeito que a natureza age com freqüência para atingir suas metas: o verdadeiro objeto, a possibilidade da vida, é encoberta pela imagem ilusória da arte em direção à qual estenderam a mão.  Os gregos não eram excepcionais apesar de serem músicos embriagados e sim, eram espetaculares, por serem alegres fanfarrões.

A tragédia permite que contemplamos a exuberante monstrusiodade da existeência sem sermos pedrficados


Um comentário:

  1. Se você pensar bem, podemos reduzir tudo a essa emulação entre o apolíneo e o dionisíaco, toda obra de arte e até toda forma de viver. Quantas vezes, numa discussão sobre arte, não chegamos a essa equação? Talvez pudéssemos multiplicar, em vez de dividir...

    "A tragédia permite que contemplemos a exuberante monstruosidade da existência sem sermos petrificados." Acho que o Lars Von Trier foi o único artista que conseguiu causar esse efeito em mim, aliás, ele me petrificou já, mas depois eu aprendi a lidar com isso, a catarsear.

    ResponderExcluir